sexta-feira, 23 de novembro de 2007

"HÁ POR AÍ MUITA COWBOYADA DE FILMES AMERICANOS NA MENTALIDADE DE ALGUNS POLÍCIAS"


«Inspector- Geral da Administração Interna, Clemente Lima

"Há por aí muita cowboyada de filmes americanos na mentalidade de alguns polícias"

Há dois anos no cargo de Inspector-Geral das polícias, Clemente Lima fiscalizou mais de 200 esquadras e postos da PSP e da GNR e estudou com rigor as mortes ocorridas em perseguições policiais, 10 nos últimos dois anos. A conclusão é brutal: há incompetência, adrenalina e tiros a mais.

in Valentina Marcelino http://www.expresso.pt/
Sexta-feira, 23 de Nov de 2007


Sentiu-se "invadido" no seu território quando o PGR pediu poderes para fiscalizar as "suas" polícias em matéria de escutas?
As competências técnicas da IGAI centram-se nos processos disciplinares e não nos processos criminais. Se a IGAI detectar escutas ilegais nas polícias que inspecciona, o que nunca aconteceu, encaminha o processo para o Ministério Público. Não há nenhuma invasão de competências. São áreas distintas de intervenção.

Como juiz, tem ideia que os juízes de instrução criminal controlam adequadamente os números que autorizam as polícias a escutar?
A ideia que tenho é que as escutas que são feitas nos TIC são muitos "checadas" . É evidente que isso depende do grau de empenhamento de cada um, com tudo. Diria que tem dias. E tem juízes... Mas tenho a certeza de que o grosso da coluna controla...

Acha que não havia motivo para o alarme provocado com as declarações do PGR?
Da prática judiciária nunca tive essa percepção. Nunca ouvi barulhinhos nos meus telefones.

Nestes dois anos onde chegou o "braço" da IGAI?
A IGAI não é propriamente uma "longa manus". O ponto de referência da minha gestão da IGAI é, numa frase curta, uma intervenção pedagogicamente activa. Não tendo eu necessidade de ter a visibilidade que teve o meu antecessor, Dr. Maximiano Rodrigues, que criou e sedimentou esta casa, tenho procurado fazer a gestão da pedagogia das boas práticas policiais por dentro, assinalando às instituições aquilo que penso serem essas boas práticas.

E que boas práticas se refere?
Um exemplo que me preocupa muito, e que vem das inspecções sem aviso prévio que temos feito, é no atendimento ao cidadão. Há por aí muita impertinência, muita intolerância, muita impaciência da parte da polícia. O que significa incompetência. E isso cria no cidadão uma representação da polícia que se calhar não tem a ver com a substância da intervenção policial. Acho isto intolerável. E ainda mais intolerável é a atitude das chefias, de alguma tolerância face a estes comportamentos.

Mas há certamente problemas mais graves, como as mortes causadas em perseguições policiais...
Sem dúvida. Problemas mais graves temos na área de intervenção da GNR com perseguições policiais iniciadas por motivos que me parecem inadequados, como por exemplo, por passar um sinal vermelho ou desobedecer a uma ordem de paragem numa operação stop. As forças policiais devem ter consciência que as perseguições policiais criam uma adrenalina própria e geram muitas vezes asneira. Temos tido a esse nível casos recorrentes. Não há uma endemia, há uma patologia. Casos isolados. Mas a repetição de casos isolados preocupa-me. Nos últimos dois anos, na GNR registaram-se sete dos 10 mortos em perseguições...

Há cerca de um ano, em reacção à morte provocada, precisamente, por um militar da GNR, numa perseguição policial, afirmou que "às vezes mais vales deixá-los fugir". Essas declarações não foram muito bem recebidas pela Guarda que sentiu a sua autoridade ameaçada. Ainda pensa assim?
Penso. Tem que se fazer a avaliação das situações. Não podemos ter como resultado de uma infracção de trânsito a pena de morte. A passagem de um sinal vermelho não pode ser punida, sem intermediação de um tribunal e sem direito à defesa, com a pena de morte. Até porque a própria perseguição gera perigos. Num meio urbano há terceiros que podem ser atingidos. E isto é inadmissível. Uma coisa é perseguir um indivíduo que se sabe que acabou de cometer um homicídio, outra é perseguir alguém que cometeu uma infracção de trânsito ou uma desobediência.Acho, como disse na altura, que a autoridade não se defende a tiro.

E porque acha que a GNR tem mais tendência para esses comportamentos?
Terá a ver com um padrão militarizado de actuação. Tenho algumas preocupações relativamente à formação dos oficiais na Academia Militar (AM). Há uma sobrevalorização dos conceitos militares relativamente aos policiais. Tem havido situações no território de jovens oficiais da GNR oriundos da AM como uma formação padronizada no "inimigo". Olham para o cidadão como o "inimigo". Talvez consigam fazer a comutação para "adversário" mas isto cria deturpações na relação com o cidadão. Não chega. E com a mimetia de comportamentos que se faz numa organização tão hierarquizada isto só pode ter maus resultados.

Na prática, apertam o gatilho com mais facilidade que a PSP?
Sobretudo porque isto fica no subconsciente. Quando é adquirido na zona "verde" da formação, quando as pessoas estão em crescimento pessoal, profissional e até psicológico, ficam com estas regras interiorizadas, depois arrasta comportamentos.Não sei mesmo se a GNR não devia pensar em formar os seus próprios oficiais. Sei que não é fácil fazer essa comutação. Até porque a GNR não está, neste momento, em condições de perder a ligação aos valores militares puros. Não me parece que neste momento estejamos em condições para avançar para uma "civilização" da guarda.

E há treino suficiente para a utilização das armas?
Acho que vai havendo algum treino. Tinha uma primeira impressão que não acontecia. Mas sei hoje que vai acontecendo. Os comandos estão preocupados com o treino e têm feito algum investimento nesse campo. Mas eu preferia sempre a utilização das armas não letais...

O seu antecessor defendia que se devia ir no sentido do exemplo britânico... mas ainda recentemente foram adquiridas 40 mil pistolas muito mais potentes para equipar do simples patrulheiro às unidades especiais...
Confesso que também gosto da imagem britânica. Mas o modo de intervenção policial tem de estar adequado ao tipo de criminalidade. Não se pode ir trabalhar para Campo de Ourique como se vai um bairro problemático. Devia haver formação especializada, por exemplo, para quem vai trabalhar para os bairros problemáticos. Há saberes que se têm de adquirir. A criminalidade violenta não pode ser combatida com bisnagas de gás pimenta. Mas isso tem a ver com as conjunturas dos países e com a formação cívica das populações. No nosso caso acho que o cidadão ainda vê muito a representação da autoridade na visibilidade da pistola. Sente-se mais seguro e sente a necessidade de respeitar.

E o inspector-geral sente-se mais seguro?
Usar pistolas é uma questão que se pôs muitas vezes na magistratura em situações esporádicas de alguma /detenção/ tensão. Se o juiz devia ter ou não pistola. Acho que ter uma pistola é sempre a melhor maneira de levar um tiro. É preciso ter uma preparação muito cuidada, muito permanente.

Deu alguma recomendação específica para a GNR, tendo em conta as mortes que os seus militares provocaram?
Fizemos um estudo sobre as perseguições policiais no qual analisámos caso a caso as mortes de 2005 e 2006. Foi remetido ao Sr. Ministro da Administração Interna. No despacho que enviei, sublinhei que o número e as sequelas dos casos analisados evidenciam e justificam a necessidade de um investimento urgente: na adopção, pelas forças de segurança, de procedimentos uniformes em matéria de recurso a meios coercivos; na análise, no interior de cada uma das forças de segurança, do impacto (também económico) das perseguições policiais; na formação inicial e contínua, neste particular, dos agentes das forças de segurança. Não se pode iniciar uma perseguição de qualquer maneira. Isto tem técnicas. Não pode ser por impulso em de uma maneira improvisada. Os resultados que temos tido não podem acontecer.

Há mais processos disciplinares?
Não posso fazer um balanço rigoroso sobre isso. Só as próprias polícias têm a informação completa. A IGAI tem uma visão muito parcelar, pois nem todos os processos disciplinares vêm aqui parar. O grosso é gerido nas inspecções internas. O problema é que estas inspecções internas neste momento estão descredibilizadas e anémicas. Quer na GNR, quer na PSP, as inspecções estão desactivadas, limitam-se a um trabalho burocrático, estão sem pessoal e sem condições de trabalho. Parece-me que era importante que houvesse aqui um investimento, até por razões de aproveitamento das qualidades de quem, neste momento, as comanda.

Como está o inquérito relativo à suspeitas de elementos policiais a trabalhar para empresas de segurança privada em discotecas?
Temos dois processos a esse nível. Um processo de inquérito que tem a ver com uma situação detectada antes destes últimos factos, por queixa de um gabinete de advogados, cujos clientes terão sido agredidos à porta de uma discoteca e haveria o envolvimento de um polícia nessas agressões. Temos depois um processo administrativo de acompanhamento das diligências da PSP na sequência da denúncia do dirigente da ASPP segundo a qual haveria polícias em actividades de segurança privada. Estão a decorrer.

Escola Prática da GNR. Um ano e meio depois o que conseguiu a IGAI apurar? Os suspeitos de estarem envolvidos em ilegalidades, tenente coronel Joaquim Pinheiro e tenente coronel João Pedrosa têm os processos concluídos?
São processos que têm tido evolução complicada. Implica muita análise de papel, financeira. Neste momento estão pendentes três processos disciplinares. O do tenente-coronel Joaquim Pinheiro, que referiu, ex-presidente do Conselho de Administração. A fase da instrução terminou com uma acusação em que lhe são imputadas sete infracções disciplinares, sendo susceptível de caber à mais grave a pena de reforma compulsiva. A defesa foi apresentada e vai ser elaborado relatório final.Quanto ao arguido Tenente-Coronel João Pedrosa, o processo está na fase de instrução. O ex-ministro António Costa mandou alargar o âmbito do processo relativamente a gestões anteriores nos últimos 10 anos. É isso que está a ser investigado.

E relativamente ao tenente Carlos Coelho, suspeito de ter sido autor da "fuga" de informação para os jornais sobre estes casos?
Relativamente ao Tenente Carlos Coelho, foram-lhe imputadas três infracções disciplinares, sendo atribuída à mais grave a suspensão de 120 dias. Está na fase da defesa.

Tendo sido este oficial quem detectou as ilegalidades cometidas, se ele for suspenso, que sinal quer a IGAI dar para estas forças? Que o melhor é calar?
O que o instrutor do inquérito apurou é que terá sido o tenente Coelho a libertar a informação para o exterior. Apurou também que não o fez por dentro, ou seja, não informou primeiro os seus superiores hierárquicos, no foro próprio.

Conhece a cultura castrense numa instituição como é a GNR?
Admitindo isso tudo.

Já tem "feed-back" das recomendações que fez às polícias no seu despacho sobre os acontecimentos da Covilhã, nomeadamente sobre a forma como devem agir na preparação da segurança de uma manifestação sindical?
Na altura achei que devia focar aquilo que de direito me parecia que não devia ser esquecido, que é uma perspectiva constitucional da questão. Utilizei a expressão de Gomes Canotilho que diz que as manifestações devem ser tratadas de forma amigável pelas autoridades. Isto tem muito a ver como o que penso sobre o direito à manifestação. A irrequietude cidadã é um valor para a democracia e isto não se pode perder.Naquele caso em particular, continuo convencido que houve inabilidade pura e simples. Típicas de cidade de província. "Vamos lá ver o que é que eles vão fazer na manifestação..." e vão ao sindicato que é ali ao lado. Logo por azar é o sindicato dos professores. Depois estão na conversa com o funcionário, bebem café com o funcionário, levam panfletos...

Não acredita que não tivesse havido qualquer instrução superior para essa atitude?
Não. De todo. Não tenho qualquer dúvida. Agora, o polícia é que tem de saber que não pode entrar assim num sindicato. É uma questão de cultura técnica. Naquele caso, parecia-me inadmissível que aqueles dois rapazes da PSP ficassem crismados por uma infracção disciplinar. Houve inabilidade e algum zelo incorrectamente dirigido.Há um ponto importante, que é a questão da comunicação da autorização. Quem quer manifestar-se não tem de pedir autorização. Nos termos da lei, tem de comunicar ao governo civil ou à câmara municipal. No meu entendimento o que as polícias têm de fazer é ir a estas entidades pedir a informação que precisam. A interpelação de potenciais manifestantes é obviamente invasiva.Quanto às recomendações, ainda não me chegou nenhum eco da sua execução.

Acha que as polícias têm formação suficiente em matérias de direitos fundamentais dos cidadãos?
Acho que não. Acho que há carências absurdas. Nem na GNR, nem na PSP. Nesta última, há poucos dias, um dos inspectores da IGAI que andava no terreno, constatou em duas ou três ocasiões que agentes recém-formados não faziam a menor ideia o que era a IGAI nem a razão da sua existência. Confundiam a IGAI com a ASAE. Isto é preocupante e intolerável. A IGAI é um referencial na defesa de direitos humanos relativamente às polícias e na relação das polícias com o cidadão. Dei nota desta minha apreensão ao Director Nacional da PSP. Acho esta situação absurda.

O seu antecessor às vezes queixava-se que as polícias por vezes demoravam a acatar as recomendações que produzia...
As recomendações da IGAI não têm força vinculativa. No que me parece essencial o que tenho procurado fazer é propor ao Ministro que determine. E aí deixam de ser recomendações, mas ordens do Ministro. No que parece menos essencial, tenho dito o que penso dos assuntos. O espírito que tenho encontrado é de acatamento. Muitas vezes os problemas são provocados pela falta de meios. Por exemplo, aconteceu-me, várias vezes, recomendar que fossem encerrados determinados postos da GNR ou esquadras da PSP. O caso da esquadra do Lagarteiro é flagrante. Não tem condições de trabalho para ninguém. É um contentor no meio de um bairro social para onde atiram tudo, desde lixo a "cocktails molotov". A utilidade social daquela esquadra não é nenhuma. Precisa de ser redimensionada.Mas neste tipo de bairros, quase guetos, a ausência da entidade policial representa a ausência de autoridade de Estado. Portanto, mesmo naquelas condições, não de pode tirar aquela esquadra sem ter uma alternativa. Mas isso tem a ver com as prioridades da Direcção Nacional da PSP e com os meios disponíveis.

Tem tido sempre um discurso anti-securitário... acha que essa atitude serve para dar uma resposta adequada ao crime violento de hoje em dia, como o terrorismo ou a criminalidade transnacional?
A melhor resposta é a de Espanha, no julgamento do atentado do 11 de Março. É um julgamento feito "by the book", segundo as regras comuns. Não houve um tribunal especial. Foi condenado quem tinha de ser e absolvido quem tinha de ser, segundo as regras aplicáveis a qualquer cidadão. A questão é ter leis e execução de leis adequada. Não podemos ter leis a responder à violência com violência. A violação dos direitos ou a supressão de garantias é geradora de ressentimento, com efeitos negativos, no futuro, para as comunidades.

E como é que se previne este tipo de criminalidade?
Com apuramento de técnicas. Com informação policial e controlo da informação policial. Controlo da legitimidade dessa informação. As pessoas têm que compreender porque são sancionadas. O medo dos cidadãos e o desejo de perfeccionismo, de alcançar um resultado, o cumprimento da missão a qualquer preço, por parte dos agentes da autoridade podem agravar o sentimento de insegurança. Há por aí muita "cowboyada" de filme americano na mentalidade de alguns polícias. Muito gosto na exibição da pistola. Muito gosto por andar à paisana. Por exemplo, acho que as zonas de investigação criminal precisam de ser mais controladas. É preciso muito cuidado com estes agentes policiais que andam à paisana, muitas vezes armados em agentes da Polícia Judiciária, fazendo um trabalho descontrolado.

Acha que ajudaria se se tivesse ter ido mais longe na reforma da organização do sistema de segurança interna? Uma unificação das polícias seria admissível?
Tem-se assinalado que a dualidade policial traduz uma estrutura mais democrática, com o argumento de que duas forças são menos manipuláveis do que uma só... Ainda assim, numa perspectiva meramente técnica, seguindo referenciais económicos, de gestão, continua a parecer-me mais eficiente e mais barato um modelo de polícia única. É inevitável que isso aconteça no futuro. A polícia única não é uma questão de "se", mas de "quando". Há também que reconhecer que o modelo policial dualista que temos não é linear, mas antes um modelo fragmentado. De qualquer forma, uma maior coordenação das forças de segurança, como será a resultante da criação de um secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, é sempre bem vinda.

E os argumentos que justificam a existência de uma força militarizada para responder às missões internacionais?
A isso responde-se com valências. Uma polícia única pode ter unidades especiais treinadas para esse efeito. A maior parte do tempo a GNR está a fazer trabalho policial puro no território nacional. Em tese, não considero essencial para um funcionamento eficiente das estruturas policiais uma lógica de militarização. Sem embargo, devo reconhecer que, no momento que vivemos, com as forças de segurança que temos, uma estrutura militarizada e fortemente hierarquizada traz vantagens e facilita o exercício de comando. E atenção que não me faz nenhuma confusão que seja a GNR o padrão em vez da PSP. A questão é que se evolua para uma polícia única com um grau de civilidade que dispense o critério militar de actuação. E, já agora, não me parece avisado que se dupliquem unidades, como as de intervenção ou de segurança pessoal, conforme previsto nas leis orgânicas das polícias, recentemente aprovadas.

Em 2006 a IGAI deixou de fazer várias inspecções por causa da falta de recursos humanos e verbas. Não tem meios para trabalhar?
O plano de actividades de 2006 era muito ambicioso. O de 2007 foi menos extenso e mais centrado em acções de formação. A IGAI tem um quadro de 22 inspectores e neste momento temos 15 ao serviço. É pouco. Mas também só acorremos às situações mais graves. Havendo inspecções internas credíveis e com distanciamento se calhar 22/25 inspectores na IGAI seriam suficientes. Mas neste quadro é manifestamente pouco. Não os temos porque há alguma dificuldade em recrutamentos. Cada vez mais são precisos quadros especializados. Por exemplo na área financeira.

O que mais o surpreendeu durante o seu mandado?
Positivamente há duas coisas a realçar: um grande culto de serviço, vontade de servir bem e os casos de altruísmo assinalável. Propus ao MAI que se crie um prémio de boas práticas policiais, que assinale, pelo menos, uma vez por ano, este espírito. Pondo o tom nesta questão de direitos humanos e cidadania.Negativamente: a recorrência às situações patológicas que já referi, em que as instituições mesmo reconhecendo que há anormalidades, têm dificuldade em absorver as boas práticas.A desconsideração no atendimento aos cidadãos parece-me intolerável, assim como também é intolerável a complacência com esse tipo de situações por parte dos comandos e chefias.Outra preocupação que tenho é que desde que estou na IGAI mantêm-se os rumores que continua a corrupção na fiscalização do trânsito. Tenho algumas dúvidas sobre este modelo de polícia-cobrador, ainda que me pareça que a corrupção tenha mais a ver com a atitude no momento da fiscalização, que na altura do pagamento. Há aqui trabalho a fazer, principalmente com as chefias intermédias que devem estar atentas aos sinais.

Qual foi a situação mais complicada que viveu aqui?
Não sou capaz de identificar assim um caso em particular. Confesso que, na minha maneira de ser, sou um típico "raladinho". Sou um ralado por natureza. Sofro muito as coisas. E acho que os comandos têm noção que sofro tanto como eles quando as coisas correm mal. Sou neto de um GNR tenho do meu avô as melhores referências de integridade e dedicação.Por outro lado, não tenho feitio de inspector. Tenho mais um instinto pedagógico de saber ouvir para compreender. Compreender para julgar é essencial.

A polícia de hoje é diferente da de há dois anos?
Acho que sim. No que diz respeito à mentalidade, do trabalho ao nível da relação com o cidadão. É preciso todos os dias construir. E temos feito muito trabalho de campo. Nesse aspecto sinto que sairei daqui com sentido de missão cumprida.

É verdade que não vai a festas da PSP e da GNR?
Isso foi outra coisa que também me surpreendeu negativamente. A multiplicação de rituais e de liturgias caríssimas. As festas das unidades, dos comandos, etc., etc.. Vou ao dia da polícia e ao dia da Guarda nos Jerónimos. Vou às Escolas. Percebo mal o dinheiro que se gasta na multiplicação destas comemorações. E percebo mal também, que se façam festas para o interior das instituições, que se multipliquem essas festas, "pim, pam, puns" para o interior das instituições e que não haja porosidade com as populações. Por exemplo, não percebo que nas cerimónias do dia da GNR e da PSP nos Jerónimos, a população esteja a 500 metros de distância. Já não se usa. Para não dizer que às vezes me parece um pouco kitch e de mau gosto. Costumo dar como exemplo a Marinha, que me tem surpreendido nesse ponto. O croquete é só um para cada pessoa, mas é do melhor. O champagne é meia flute por pessoa mas é da melhor qualidade. Fazem as coisas na medida, sem quebra de dignidade. Há aqui alguns exemplos a seguir por parte das forçar de segurança. Cometem-se excessos. E, ao mesmo tempo, custa-me ver que há por aí postos, principalmente da GNR, que estão rapados e há aqui zonas de investimento prioritárias. Aceito mal isso. Tenho deixado de ir a cerimónias com esse sentido. Devia haver alguma moralização neste aspecto.

Quais são as suas prioridades para 2008?
O plano de actividades está em construção. Estamos a ouvir as várias forças. Quero ainda investir na formação e fazer uma coisa que nunca se fez: uma reflexão sobre os 10 anos da IGAI. Sobre como podemos evoluir. De resto, manter as inspecções sem aviso prévio, mas dirigindo-as mais para as relações com o cidadão no dia-a-dia e para as condições de serviço. Ninguém consegue em condições execráveis, como no Lagarteiro, ter uma relação fluida com o cidadão. O investimento nas condições de trabalho é essencial.

É filiado no PS?
Não. Fiz o meu percurso de juventude na JS, mas nunca me filiei. Até porque pouco tempo depois de ter acabado a faculdade ingressei na magistratura e, nesta, tem de se ser independente até à medula dos ossos.E, na magistratura, sempre cultivei o mote do meu conterrâneo Aquilino Ribeiro: "livre me considero e livre me prezo".

Mas foi convidado pelo número 2 socialista António Costa...
Não o conhecia. Aliás, continua sem saber onde é que o ex-ministro descobriu o meu nome. Quando me convidou ainda lhe disse que não tinha gravatas para o cargo... Mas a minha relação com o PS quedou-se no meu tempo de Faculdade. José Castelo, António Vitorino, Carlos César...que foram meus colegas de curso. Mas continuo sem saber de onde veio o recomendação do meu nome. Ele só me disse que eu tinha bom nome na praça... e penso que se estaria a referir à magistratura.

Tem saudades dos tribunais?
Tenho saudades todos os dias. Da adrenalina da sala de audiências, da relação com o cidadão, mesmo que por interposto processo, como é o caso de um tribunal de recurso. A minha ideia é cumprir esta missão de três anos e regressar. Não consigo viver sem aquele oxigénio.

Três anos é pouco tempo para mudar estas instituições nos aspectos que destacou... e se o voltarem a convidar?
Nessa altura responderei.

Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 24 de Novembro de 2007, 1.º Caderno, página 16.
Clemente Lima não vai às festas da GNR e da PSP: “Já não se usa. Parecem-me de mau gosto. Devia haver alguma moralização”
Foto no artigo original de António Pedro Ferreira»


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